quarta-feira, julho 28, 2010

Insipiência


















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“Para Bel, porque você é um observatório que me faz enxergar”

A frase acima estava estampada, com letras que mais pareciam desenhadas de tão caprichadas, na capa da edição usada que eu acabara de adquirir de “Palomar”, do Ítalo Calvino. Eu havia comprado o livro em um sebo do centro da cidade, e devido a enorme pressa não vi a declaração escrita dentro do livro. Mas sinceramente gosto dessas coisas, tenho dezenas de vinis e livros usados com frases das mais diversas, são demonstrações de amor e carinho entre namorados, familiares, amigos e até amantes. Os objetos usados parecem que carregam um sentimento extra, uma energia acumulada ao longo dos anos que faz daquele disco ou livro único em todo mundo. Afinal, aquele exemplar de “Palomar”, com aquela frase, era uma edição que só eu possuía.

A declaração no início do livro só fez sentido depois que comecei a lê-lo. “Palomar” é uma publicação de contos, em que o personagem homônimo, um observador nato, passa a contemplar, devanear e escrever sobre as mais diversas coisas, desde uma simples onda até os belos seios de uma mulher ou o acasalamento de tartarugas. Ele era uma espécie de observatório, assim como a tal Bel, que fazia um provável namorado enxergar. Mas por que será que esse livro foi parar em um pequeno sebo onde só os transeuntes mais atentos e perspicazes entram? Essa era uma pergunta que martelava na minha cabeça. Quem seria Bel? Por que ela se livrou do livro? Será que ela era uma mulher interessante, digna do meu interesse? Dizem que a curiosidade move o homem, e comigo não era diferente. No outro dia resolvi voltar ao sebo em busca de respostas.

José Antônio da Conceição, conhecido popularmente como Zé do Sebo, vende livros, revistas e vinis usados há 20 anos. Seu estabelecimento fica localizado perto do Mercado Público da cidade, em uma rua que apesar de central é pouco movimentada. Ele cativou um público fiel ao longo dos anos, responsável pela constante circulação de materiais disponíveis no sebo. O senhor, no alto dos seus 60 anos, conhece praticamente todos os frequentadores do local, e seria a pessoa ideal para me falar sobre a dona original de “Palomar”. Voltei ao sebo pela manhã bem cedinho para evitar um movimento maior e ter a oportunidade de conversar tranquilamente com o Zé do Sebo. Chegando lá expliquei toda a situação paranóica na qual eu me encontrava, calmamente ele me respondeu que conhecia a Bel e que ela era a sua cliente mais fiel, há anos. O relato a seguir é a curiosa história que me foi passada:

Anabel, ou Bel, como ela gosta de ser chamada, é uma pessoa 100% sentimento. A beleza de uma mulher de 1,70 de altura, com cabelos longos e lisos, olhar penetrante e sorriso encantador, esconde uma pessoa extremamente ciumenta, dona de dezenas de relacionamentos frustrados em seu currículo amoroso. Mas o mais estranho estava por vir, já que uma curiosa característica dita a vida dela. Quando um relacionamento termina, ela não consegue manter nada, absolutamente nada em sua vida que a lembre de seus ex-namorados. É nesta parte que entra o Zé do Sebo. Ao longo de 15 anos Bel vem despejando dezenas de objetos por lá, e “Palomar” era apenas mais um livro que ela se livrou após o fim de um namoro. Depois deste último término ela ficou com trauma do Ítalo Calvino e nunca mais leu nada do autor. Essa era uma situação comum na bolha sentimental que envolvia a moça. Bel já gostou muito de Rock, mas quando Marcelo terminou com ela, nunca mais escutou nada do gênero, vendendo sua coleção inteira de discos do Led Zeppelin e dos Beatles. O mesmo aconteceu com o Soul – e lá se vai Aretha Franklin, Otis Redding, James Brown – MPB, Bossa Nova, Blues – vendeu por uma bagatela aquela coleção de dvds do Scorsese sobre o estilo – Samba, Jazz, discos e mais discos de infindáveis artistas foram dispensados graças ao fim de vários relacionamentos. Atualmente Bel está escutando apenas World Music, música do oriente, Tailândia, Coréia do Sul, China, algum desses países, o Zé do Sebo não soube precisar. Pergunto-me em voz alta que tipo de livros será que Bel estaria lendo. O dono do sebo me responde que não tem a mínima ideia, já que ela deixou por lá livros da Agatha Christie, Stephen King, Nick Honrby, José Saramago, Paulo Coelho (esse eu concordo que ela devia se livrar), Truman Capote, Tom Wolfe entre tantos outros escritores. Bel era uma pessoa em constante transformação, sua vida, seus pertences, seus hábitos diários mudavam de acordo com os relacionamentos, e ela nunca voltava a ser como antes. No campo de visão de Bel não podia haver nada que a lembrasse de algum ex-namorado, ex-affair e até ex-ficante, ela enlouqueceria na certa. Fico pensando se não haverá um dia em que ela não terá mais o que fazer, se não chegará um ponto em que qualquer coisa, um simples toque de telefone ou então o inocente ato de ligar a televisão a lembre de algum ex de forma traumática.

Depois de conhecer a história da Bel e matar a minha curiosidade, encerrei minha busca pela dona do exemplar de “Palomar”. Não queria prosseguir com esta história platônica de conhecer a personagem da frase, não tinha o mínimo interesse em encontrá-la pessoalmente, afinal, o risco de ver futuros presentes parados no Sebo do Zé era gigante!

domingo, julho 11, 2010

Separação


Roberto e Elisa viveram um relacionamento de quatro anos. O desgaste proporcionado pelo tempo e as constantes brigas geradas pelo ciúme do rapaz levou a garota a terminar tudo com ele. Porém, a menina ainda tinha um afeto muito grande pelo ex-namorado e uma estranha amizade continuou entre os dois. Quatro meses se passaram desde a separação, e Roberto controlava diariamente o ciúme que sentia por saber que Elisa estava vendo outra pessoa. Hoje o domingo é de sol, e Roberto e Elisa estão no parque, não mais de mãos dadas como faziam antigamente, mas caminhando lado a lado, tentando disfarçar um certo constrangimento da situação:

- Então Beto, como vai a vida?
- Ah, ta indo...e contigo, tudo tranquilo?
- Sim, já estou melhor daquela gripe que tinha te comentado no outro dia.
- Não era nada sério então?
- Não não, só um pouco de dor de garganta, mas agora está tudo bem mesmo, não precisa se preocupar.
- Mas tu tomou remédio, ta se agasalhando direitinho?
- Sim, a mãe estava me visitando e não deixou faltar nada lá em casa.
- Qualquer coisa que precisar tu sabe que pode me ligar, né?
- Claro, fica tranqüilo.
- E o feriado semana que vem, vai ficar por aqui mesmo?
- Acho que vou visitar minha prima na praia, mas ainda não é certo. E tu?
- Vou ficar por aqui mesmo.
- Alguma festa?
- Ah, não sei, não tenho saído muito pra falar a verdade. Ultimamente minha vida é sair de casa para faculdade,  faculdade para o estágio, e do estágio para casa.
- Hum....esses dias fui naquele restaurante tailandês que costumávamos ir.
- Faz séculos que não vou lá, desde que terminamos pra falar a verdade.
- Hum...Beto...quero saber se tu quer continuar sendo meu amigo ou se é melhor perdermos o contato, sinto muita mágoa quando tu fala comigo.
- Linda, eu queria ser teu amigo, mas parece que simplesmente nossa amizade não existe, nós quase não conversamos mais, não saímos, não nos vemos, não nos ligamos, e eu confesso que quando eu penso que tu tá com outro eu sinto muita mágoa mesmo, não da para esconder esse tipo de coisa...
- Eu sei, mas eu me afasto por achar que é impossível conversarmos e fazermos coisas divertidas juntos, porque sempre vou me achar culpada pelo que aconteceu, talvez isso demore para acontecer Beto.
- Pois é, mas sei lá, podia me ligar de vez em quando, dar um sinal de vida, qualquer coisa. Eu sinto tua falta, mesmo como amiga, mas às vezes se eu não me manifesto parece que eu nem existo mais pra ti.
- Claro que existe Beto, tu sabe que foi e é muito importante pra mim. Mas nossas vidas tomaram rumos diferentes, chegamos numa encruzilhada e cada um foi pra um lado. Vamos tentar melhorar nossa relação de amizade, sem muita mágoa Beto, sem provocar ciúmes ou dor, mesmo que seja difícil, ou então vamos nos afastar de vez...
- Não quero me afastar de ti, mas é que eu fico triste às vezes...
- Eu sei, é por isso que eu sumo, sou culpada.
- Ver fotos tuas com outra pessoa me destrói o coração linda, é triste, mas eu ainda sinto ciúmes...
- Então é melhor nos afastarmos de vez...
- É isso que tu quer?
- Se tudo que eu faço te provoca dor não tem porque a gente querer ser amigos, eu nunca vou esquecer tudo que passamos juntos, e não tem nem como comparar o que vivemos com qualquer outro relacionamento, mas pra mim é difícil, me corrói por dentro, me sentir responsável pela dor de alguém...mas não posso fazer nada...
- Mas eu não quero me desligar de ti...
- Então temos que agir como adultos, nossa relação só vai melhorar o dia que tu me aceitar como amiga, sem esperanças de uma volta...
- Mas eu não tenho mais esperanças, perdi todas...mas isso não implica na relação de eu gostar ou não de ti...
- Então vamos levando aos poucos, podemos mudar e talvez as mágoas irão embora. Isso não acontece de uma hora pra outra.
- Independente de tudo, tu sabe que sempre vai rolar uma ponta de ciúmes, apesar de tu ter acabado comigo aposto que seria estranho se tu me visse com outra mulher.
- Eu sei disso...
- Enquanto não arrumar um outro alguém vou ficar eternamente preso nessa depressão...
- Reserva um tempo pra ti Beto, é o melhor a fazer. Bom, agora eu preciso ir, podemos nos ver amanhã se tu quiser...
- Claro...
- Até mais então! Beijinho!
- Até...tchau...

Roberto não apareceu para encontrar Elisa no outro dia. Depois daquela conversa no parque ele finalmente entendeu que não conseguiria nutrir outro sentimento pela ex-namorada que não fosse o mais puro e intenso amor de homem e mulher. Para ele, a amizade estava fora de cogitação...