Por Rafael Pesce
Ilustração: Theo Szczepanski
Vum Vum Vum Tec Vum Vum Vum Tec Vum Vum Vum Tec...o
barulho do velho ventilador o despertou. O quarto era mal iluminado, com apenas
uma cama de solteiro coberta pelo pó. Ao lado, uma pequena cômoda com um
telefone antigo. Uma televisão 14 polegadas, com alguns botões faltando,
completava a decoração. Na porta, um chaveiro escrito HOTEL MIRANTE entregava o
lugar em que acordara. Como ele havia chegado ali ainda era uma incógnita. No
corpo, uma camisa de cetim, uma calça jeans desbotada e um relógio quebrado. No
chão, um par de sapatos com as meias ainda dentro. Levantou da cama, ainda um
pouco zonzo. Não fazia a mínima ideia de como chegara ali. Lembrava apenas do
seu nome, Victor. Profissão? Família? Namorada? Nada, nada aparecia em sua
mente, apenas um grande vazio preenchido por uma sensação de estranheza.
Colocou as meias e o sapato, abotoou a camisa e ao se levantar sentiu um leve
peso em um dos bolsos. Puxou um cartão. Nele estava escrito: NIX – CASA DE
PENHORES – Rua Imperador de Jade, 14. Era uma pista, a única que tinha.
A cidade era desconhecida. Parecia grande, já que
prédios pipocavam por todos os lados. Entrou em uma cabine telefônica em busca
de uma lista. Procurou pelo nome da rua, mas ela não constava em nenhuma das
500 páginas. Olhou novamente o cartão para conferir se não havia se equivocado.
Mas era isso mesmo, Rua Imperador de Jade, inexistente aos seus olhos. Caminhou
por mais algumas quadras. Seguiu o caminho onde o cheiro era pior, parecia
lógico para ele. Acabou em uma pequena travessa. Lá, mulheres dos mais diferentes
tipos vendiam o corpo. Abordou algumas delas e perguntou se sabiam da
existência da rua misteriosa. Todas foram unânimes em dizer que não, com uma
convicção assustadora. Estava sem rumo. Resolveu sair daquele lugar, mas foi
interrompido por um toque no ombro. A responsável foi Labelle, uma prostituta
ruiva e obesa, que calmamente sussurrou nos ouvidos de Victor:
- Meu amor, todo mundo que vive no submundo sabe da
existência dessa rua. Mas chegar até lá é algo que muitos têm medo... medo até
de pensar. Querido, você me parece alguém que não vai desistir até encontrar o
que procura. Por isso, pegue o metrô até a estação Policarpo, vá em direção à
saída sul e ande três quadras. Lá estará o bar Potus, um lugar onde respostas
podem ser encontradas...
Labelle piscou com o olho direito, deu um tapa de
leve na bunda do rapaz e colocou algumas notas e moedas no bolso da camisa de
Victor. O metrô demorou 15 minutos para chegar até o destino. A caminhada até o
bar foi apressada. O estabelecimento era pequeno, podia passar despercebido
pelos olhos mais desatentos. Na entrada, um letreiro em néon, mas apenas a
letra P ainda exibia alguma luz. Desceu uma pequena escada que o levou até o leão
de chácara, mal-encarado. Entrou sem pestanejar sob olhares desconfiados. No
interior, uma dezena de pessoas se dividia entre o balcão e as poucas mesas. Ainda
era cedo para um movimento maior. No palco, uma banda de barbados cantava uma
versão arrastada de “Woman From Tokyo”, do Deep Purple. Sentou no balcão e
pediu o drink mais barato do menu. O barman, um velho carrancudo com tatuagem
do Charles Bronson no braço direito, o serviu. Com o copo cheio, Victor foi
direto ao ponto: “Rua Imperador de Jade, 14”. O braço tatuado apontou para uma mesa
localizada no canto mais obscuro do bar. Lá estava sentando um anão. Ele exibia
traços asiáticos e vestia um terno e chapéu que pareciam saídos da Chicago dos anos
20. Cheng era seu nome. Duas loiras robustas, em vestidos mínimos, o acompanhavam.
Compenetrado, Victor aproximou-se da mesa. O anão notou a expressão séria que o
encarava e mandou as duas companheiras se afastarem.
- Rua Imperador de Jade, 14. O que você sabe?
- Calma garoto, calma. Informações como essa tem um
preço. Você acha que é barato pagar por belezuras como aquelas duas? O que você
tem a me oferecer hein garoto?!
- Isso!!!!!!
Victor desferiu um soco tão rápido que pegou Cheng
sem nenhuma reação. O anão foi derrubado da cadeira, batendo a cabeça no chão.
A confusão despertou a ira dos frequentadores do bar, que partiram para cima do
brigão. Um a um foram caindo após sequências de chutes, socos, cabeçadas e
voadoras. Com todos já sem capacidade de reação, Victor voltou a interrogar o
charlatão:
- A rua, agora! Você tem três segundos para me dizer
antes que sua cara fique tão feia que nenhum dinheiro no mundo vai fazer uma
puta te aceitar...
- Calma, calma...calma garoto. Eu digo! Eu digo!
Essa rua fica em um lugar onde ninguém vê, pelo menos não claramente. Vá até o
centro da cidade, em direção à praça José Bonifácio. Procure pela Lavanderia
Yin-yang, você encontrará o que procura lá... agora vá, me deixe em paz, por
favor...
Victor surrupiou o dinheiro da carteira do anão e
saiu do bar. Pegou um táxi e rumou até o centro da cidade. Desceu perto de um
calçadão e começou a procurar pelo estabelecimento. Não demorou muito e
encontrou a lavanderia. Ela ficava em um local pouco visível, em uma rua
secundária. Victor parou em frente à porta. Nenhuma luz aparente. Tentou a
maçaneta. A porta estava aberta. Entrou no lugar e...
...lá dentro não havia máquinas de lavar roupa, nem
secadoras, nada. A entrada dava acesso à outra rua. Imperador de Jade, apontava
a placa. Lateralmente vislumbrou mais de uma dezena de portas. Procurou pelo
número 14 e lá estava, NIX – CASA DE PENHORES. A porta era de madeira, antiga,
com alguns buracos denunciando a ação do tempo. Entrou sem bater. Caminhou por
um pequeno corredor até chegar ao que parecia ser uma recepção. No balcão, uma
senhora idosa, certamente com mais de 70 anos. Ao fitar Victor, os olhos dela
arregalaram-se. Começou a tremer e a gritar: “Meiying, Meiying, Meiying”. De
uma ante-sala saiu uma mulher, mais jovem. Igualmente assustada, balbuciou uma
indagação:
- Não...n-n-não funcionou senhor? O que você faz
aqui? – As palavras saiam tremidas, quase incompletas.
- Como assim? Do que você está falando?
- Você não lembra? – a voz agora aparentava uma
maior calma.
- Acordei em uma pocilga, sem lembrar de nada, apenas
com este cartão no meu bolso. Que diabos aconteceu comigo?
- Senhor...é melhor me acompanhar.
Victor dirigiu-se com as duas mulheres até uma
pequena sala. Lá, um velho ancião estava sentado no chão com os olhos fechados,
entoando cânticos em uma língua estranha. Ao lado, um pequeno fogão improvisado
esquentava uma chaleira com água. Ao perceber movimento, o anfitrião levantou
as pálpebras.
- Hum...você voltou! O trabalho não funcionou?
- Ele não sabe o que aconteceu, está desnorteado.
Procura respostas, urgentes. Parece que não vai desistir até as encontrar –
respondeu a mais jovem das mulheres.
- Hum...e você meu jovem, tem certeza que quer
descobrir o porquê de tudo?
- Vamos velho, me fale logo o que aconteceu comigo!
- Bem, como você já deve ter percebido essa não é uma Casa de Penhores. De segredos, talvez.
O conhecimento da existência desse lugar é privilégio para poucos. Mas bem, o
que eu faço aqui meu jovem, é uma arte há muito tempo esquecida, uma arte que é
passada de geração a geração. Neste recinto, os segredos das pessoas são
guardados, muitas vezes até esquecidos. O fruto desse abandono é o alimento da
nossa casa.
Victor não se sentia completo desde que acordara. O
vazio interior crescia assustadoramente a cada segundo. Transtornado e sem ter
certeza do que estava pedindo, deixou as palavras fluírem:
- Você tirou um segredo. Pode colocá-lo de volta?
- Hum....tem certeza que é isso que quer?
- Ou é isso ou é o fim da linha para mim, sinto um
abismo se abrindo dentro da minha cabeça.
- Tudo bem meu jovem, sente-se aqui.
Victor acocorou-se ao lado do ancião. A água que
estava esquentando, a essa altura já estava fervida. O velho pegou uma caneca e
colocou algumas ervas dentro. Sovou todo conteúdo e misturou com o líquido.
- Agora beba, isso é tudo que precisa fazer.
Tremedeiras, suor excessivo, barulhos
estranhos...tudo começou a girar. Victor pensou que estava morrendo, mas a
visão que teve era pior que a morte. Tudo estava preto e branco. Um a um seus
demônios interiores foram aparecendo. Vidas passadas, há muitos séculos
esquecidas, foram desfilando na frente de seus olhos. Em meio a um assombroso
passado, reis, rainhas, bruxas e criaturas da noite ganhavam contornos
sanguinários. O protagonismo da mão que empunhava os instrumentos da morte era
sempre de Victor. As imagens percorreram o caminho do tempo até chegarem à
década atual. O panorama continuava o mesmo, apenas com uma gama diferente de
vítimas. Pouco mais de 20 minutos de um tormento quase insuportável se passou.
Victor levantou-se, agora com a convicção de quem realmente era, e saiu daquele
lugar. Três corpos foram deixados para trás, com a certeza de que certos
segredos não devem ser nunca esquecidos.
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