Por Rafael Pesce
Ilustração: Dea Lellis
O microônibus da empresa Troma partia diariamente de
São Horácio levando 12 trabalhadores para a fábrica de torneiras elétricas,
localizada nas imediações do município vizinho de Nova Budapeste. Apesar das
condições precárias da estrada de chão, os 14 km percorridos eram
tranquilos. O dia 9 de Julho tinha tudo
para ser como qualquer outro. Mais uma jornada de trabalho na vida de Alastor, operário
dedicado, marido e pai de duas filhas; de Rebeca, consultora de RH; e de
Norberto, chefe de segurança e notório mulherengo, famoso nos bordéis da
cidade. Como faziam todos os dias, os três pegaram o transporte na frente da
prefeitura, e embalados ao som das notícias da rádio Romero iniciaram o trajeto
rumo à empresa.
O movimento entre São Horácio e a fábrica era escasso. Pouquíssimos carros passavam por aquela estrada, em sua maioria trabalhadores rurais levando produtos para vender nas cidades vizinhas. O microônibus seguia sossegado, sem ultrapassar a velocidade permitida. Seu Moacir, o motorista, era um homem precavido. Vangloriava-se do fato de nunca ter levado uma multa na vida. Prezava a segurança acima de qualquer coisa. Mas nem sempre isso é suficiente.
O veículo prosseguia normalmente, mas após fazer uma
curva relativamente simples se deparou com um carro funerário, daqueles
enormes, como se fosse da década de 20. Seu Moacir não soube de onde o outro
veículo surgiu. Em um momento a estrada estava livre, no outro, não. Foi a
última coisa que ele pensou. O microônibus, na tentativa de desviar rapidamente
do obstáculo, capotou. O choque foi violento. Gasolina vazava abundantemente.
Alastor olhou para o lado e viu companheiros de trabalho já sem vida. O metal
cortou algumas partes dos corpos. O cenário era de terror e o perigo de
explosão, eminente. Sem muito tempo para pensar, o operário conseguiu tirar o
cinto de segurança e sair daquele caos. Um minuto depois e.......BUUUUUUUUUUM!!!!!!
Fogo e cheiro de morte. Mas Alastor não tinha sido o único a escapar do
acidente. Norberto e Rebeca saíram ilesos das ferragens.
Poucos quilômetros separavam os sobreviventes da
fábrica. Os três trabalhadores iniciaram o percurso para pedir socorro. Não
deveria demorar muito tempo, o trajeto a pé levaria em torno de duas horas.
Passaram-se três horas e nada. A rota já não parecia a mesma. Caminharam por
mais meia hora até que se depararam com uma casa velha, quase na beira da
estrada. Acharam estranho, pois no trajeto diário nunca haviam visto aquela
moradia. Resolveram tentar a sorte e foram para lá em busca de ajuda.
O portão era antigo, de ferro, com pontas afiadas. No
centro, uma palavra talhada: JUDICARE. A ferrugem e tipografia das letras
denunciavam a idade do casarão. Os três entraram no jardim um pouco receosos.
Não foi preciso mais do que 15 passos para chegarem à entrada. Uma argola de
ouro servia como campainha. Norberto bateu cinco vezes, sem resposta.
Impaciente, Rebeca forçou a maçaneta e constatou que a porta não estava
trancada. Um enorme salão abriu-se à frente dos três sobreviventes. Mobília
antiquada, teias de aranha e quadros que pareciam retratar antigos barões do
café ornamentavam o local. As paredes estavam todas pichadas com palavras sem
sentido para os visitantes: ratio,
placitum, iudicium, decretum, consilium, censura e arbitrium. Rebeca aparentava estar assustada. Alastor estava calado,
apenas observava tudo. O afobado Norberto saiu bufando e gritando: “que porra
de lugar é esse, vou encontrar alguém nessa merda aqui é agora”. O chefe de
segurança subiu as escadas e desapareceu rumo ao segundo andar, antes que os
dois pudessem falar algo. No hall de entrada um detalhe chamava a atenção, quase
tudo parecia duplicado. Alastor esfregou as mãos nos olhos, mas era isso mesmo,
lá estavam duas mesas, duas cadeiras, duas estantes de livros, dois tapetes,
até mesmo dois telefones antigos, um ao lado do outro. Norberto estava demorando,
preocupando os demais. Resolveram procurar o colega, mas quando Alastor estava
prestes a dar o primeiro passo em direção ao degrau, uma menina apareceu. Ela devia
ter em torno de 11 anos e estava acompanhada por um gato cinza. Ouviu-se um
miado, e em seguida um grito. No flanco esquerdo da sala, Norberto jazia
enforcado. A garota desapareceu. Rebeca chorava compulsivamente e gritava: “nós
vamos morrer, nós vamos morrer”. Correu até a porta de entrada, mas estava
trancada. As janelas fecharam-se subitamente. Descontrolada, rumou em direção a
outro cômodo da casa. Alastor, nervoso, preferiu permanecer ali.
Uma hora se passou. Nenhum sinal de Rebeca. A casa
repousava em quase completo silêncio. O único barulho presente era do corpo de
Norberto, ainda balançando. O cenário de solidão apenas se modificou quando a
misteriosa criança e seu animal de estimação apareceram novamente. O operário
abriu os olhos, assustado, e começou a persegui-la. A brincadeira de pega-pega só
terminou quando Alastor chegou a um banheiro. Mas, ao invés de encontrar a
menina, quem apareceu foi Rebeca, afogada em uma banheira que mais parecia uma
piscina de sangue. Espavorido, o trabalhador, aos tropeços, correu para o
primeiro lugar que o nariz apontou. Tentou novamente a porta de entrada, mas
ela continuava trancada. Chutou e esmurrou com toda força as janelas, mas elas
permaneciam imóveis. Resolveu subir para o segundo andar, único lugar que ainda
não havia tentado. Fez isso e correu para a direita, onde avistou uma escada que
parecia dar acesso a uma espécie de sótão, levemente iluminado por uma luz
amarela. Seguiu este caminho e chegou a uma sala verde. Deu de cara com um
piano enorme, e notou aquele mesmo padrão de objetos gêmeos. O lugar parecia
abandonado. Doce engano. De trás de uma das cortinas saiu a menina misteriosa com
seu gato. Uma luz irradiava da criança, mas a voz que conversou com Alastor
veio do gato:
- Quem entra nessa casa não pode temer, pois o sol
que ilumina a alma dos homens deve se apagar. Seja hoje ou amanhã, isso não
cabe a você decidir...
- Não tenho mais forças, pode me matar – respondeu o
operário conformado com o destino trágico.
- Cale-se! Quem é você para me dar ordens? Matar ou
não matar, isso não depende de mim. O veredicto foi traçado ao longo da sua
vida. Você não conhece a resposta? Pare de tremer e pense um pouco. No seu interior
você já sabe, é por isso que eu estou aqui para sentenciá-lo.
- Eu não sei de nada. Sou apenas um trabalhador
honesto, buscando uma vida melhor para minha família. Por que você matou meus
colegas? Por quê? Me responda...
- Quem disse que os matei?
Neste momento, uma menina igual a que estava na
frente de Alastor, saiu das sombras, permanecendo imóvel. A voz continuou seu
discurso:
- Homem, esta é a Casa do Julgamento. A missão
atribuída no casamento da luz e sombra é apenas uma: JUDICARE. Agora vá e volte para sua família, a porta
está aberta. Não tente retornar para esta casa nunca mais, pois encontrá-la
será impossível.
O operário saiu assustado do casarão. Caminhou
alguns quilômetros e dessa vez conseguiu auxílio facilmente. O microônibus foi
encontrado com os corpos carbonizados. Alastor foi o único sobrevivente. Nos
dias seguintes, a mídia começou a dissecar a vida dos acidentados. Descobriu-se
mais tarde que Norberto era o rosto por trás do “Máscara de Ferro”, um Serial
Killer de prostitutas procurado em toda região. Rebeca era responsável por um
esquema de propina que beneficiava a contratação de trabalhadores indicados por
vereadores da cidade. O dinheiro da fraude foi encontrado em uma conta
fantasma. Os políticos envolvidos no escândalo estão, neste momento, em um
microônibus, seguindo em direção a um escritório de advocacia na cidade vizinha
de Nova Budapeste.
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