quarta-feira, junho 30, 2010

O Voyeur


















Uma janela é um olho gigante para o mundo. Do alto do décimo andar do meu apartamento observo diariamente centenas de pessoas correndo para todos os lados. Pela minha visão todas parecem formigas, isso até eu pegar o meu companheiro inseparável, o binóculo. Eu confesso, sou um voyeur, adoro passear meu olhar pelas cenas cotidianas do meu quarteirão. Quando finalmente encontro algo que prenda meu interesse sou capaz de ficar horas e horas, apenas observando o que acontece, mesmo se a ação parecer um filme preto e branco dos anos 40 e não um frenético blockbuster com sei lá quantos frames por segundo.

Semana passada vi uma cena curiosa. Um mendigo virou a esquina e lentamente veio empurrando o seu carrinho de supermercado, carregado com diversos objetos que deveriam formar a sua casa móvel. Ele estava bem agasalhado, vestia um casaco alguns números maiores que o necessário, o que no caso era um benefício, já que estávamos no inverno. A calça tinha alguns furos, o que deveria incomodar em dias de forte vento. Porém algo me chamou a atenção, o mendigo usava apenas uma bota, calçada no pé esquerdo. O pé direito estava lá, imundo e sujeito às feridas causadas pela longa caminhada diária que o cidadão deve fazer. Ao entrar na minha rua o mendigo provavelmente andou por uns 300 metros até encontrar uma lixeira. Durante uns dois minutos ele revirou todo aquele lixo, até puxar alguma coisa lá de dentro: uma bota. Ele abriu um enorme sorriso, assim como eu, que também estava feliz por ele ter encontrado algo útil no meio de tudo aquilo. Mas o momento de felicidade durou pouco. Quando o mendigo foi colocar a bota ele constatou que ela era do pé esquerdo, exatamente igual a que ele já tinha. Muito irritado, ele jogou o calçado longe, no meio da rua, quase acertando um carro que passava por lá.

Outro dia vi um casal saindo de uma sorveteria. Ele era magricelo e usava um óculos fundo de garrafa que em nada ajudava a disfarçar o excesso de gel no cabelo e as muitas espinhas na cara. O guri estava usando uma camiseta do "Arquivo X", um número maior do que o necessário, mas estava com um enorme sorriso no rosto. A menina era gordinha, o que não a impedia de usar um vestido preto que alcançava os seus joelhos. O cabelo preto batia nos ombros e o sorriso dela também ia de uma ponta a outra. Vendo assim poderia dizer que era um casal feio, mas analisando novamente o que mais chamava a atenção era a felicidade dos dois, eles se beijavam sem se importar com a sujeira que o sorvete fazia cada vez que os lábios se tocavam. Os dois se encontraram no mundo, formavam um casal perfeito. Existe amor mais puro que esse? Quem sabe só o de um torcedor por seu time de futebol.

Ontem constatei que não era o único observador da rua. Na frente do meu prédio fica uma lavanderia que pertence a um casal chinês. Já fazia alguns dias que havia percebido que um dos clientes olhava incessantemente para uma linda mulher que recentemente começou a frequentar o local. Porém, ontem o rapaz não se contentou em apenas observar, e começou uma sutil perseguição a moça. Meu olhar se perdeu quando os dois ultrapassaram a segunda quadra. Fico imaginando o que aconteceu com esses dois...

Hoje o dia está calmo, a mesma senhora que diariamente visita a padaria está saindo com o seu cachorro de raça indefinida, o marido que deixou a mulher no psicólogo já foi conversar com a moça do café – os dois têm um caso – e agora vejo que a estonteante loira que coloca os pés na minha rua todos os dias às 9 da manhã acaba de aparecer no meu campo de visão. Melhor deixar meu binóculo aqui e descer, afinal, há coisas que é melhor observar de perto!

2 comentários:

Fabiano Mascarenhas Vianna disse...

Haha Genial man! Você está se superando a cada conto! Ou deveria dizer neste caso, crônica? A sua descrição do ambiente, cenas e urbanidade é fantástica. A cada novo texto, tenho mais convicção que você deveria ser apresentado ao Italo Calvino. Esta coisa de voyeur na janela me remeteu também, como não poderia deixar de ser, ao Janela Indiscreta. A diferença é que este não é um conto de suspense e sim um romance. Quem diria, surge uma pequena possibilidade de romance no final. E eu achei que você tinha se libertado. Hahaha Ficou ótimo este final, cara! O "virtual" ou "utópico" confronta-se com o real no final. Ele atravessa a janela da realidade. Do caralho man!

Sílvia Beatriz. disse...

adorei a revisitada à seu outro conto.
bj.