segunda-feira, junho 21, 2010

Papo de Cinema





















Chovia muito lá fora. O chiado do vinil reproduzia um dueto de Louis Armstrong e Ella Fitzgerald cantando “Moonlight In Vermont”. Enclausurado dentro do meu quarto, localizado no oitavo andar de um antigo prédio no centro da cidade, pensava no que fazer para evitar o marasmo de uma sexta-feira à noite nestas condições. O relógio em forma de guitarra marcava 11 da noite, um pouco tarde para planos elaborados e que dependessem de companhias. Dadas às circunstâncias resolvi fazer uma das minhas atividades favoritas: a ida solitária ao cinema. Para outras pessoas pode parecer uma tarefa ingrata, principalmente em sextas, sábados e domingos, onde você fica perdido no meio de casais de namorados e famílias com crianças barulhentas, daquelas que adoram confabular durante todo o filme. Mas eu já estava acostumado, a viagem desacompanhada ao cinema provocava reflexões individuais interessantes. Filmes são como uma terapia, é quase como ler um livro de auto-ajuda.

Para minha sorte um dos poucos cinemas de rua da cidade ficava há apenas três quadras do meu prédio. Ele não apresentava as melhores condições, sua arquitetura antiga e robusta demonstrava o descaso do tempo com o que antigamente era chamado de “Grande Cine Imperial”. Quando cheguei ao meu destino me deparei com apenas uma opção, uma sessão à meia noite de um filme chamado “Mal dos Trópicos”, de um diretor com um nome impronunciável, Apichatpong Weerasethakul. A sinopse do filme era estranha. Na trama, um jovem soldado se apaixona por um camponês, depois um deles desaparece e se transforma em um animal e o outro vai à floresta em busca dele. Muito estranho, parecia uma mistura de “Brokeback Mountain” com “Tayná 2 – A Aventura Continua”. Mas era a única opção para o horário, então resolvi encarar o desafio. Faltavam cinco minutos para o início da sessão quando entrei na sala, praticamente deserta, se não fosse por um casal na primeira fileira e uma jovem sentada em um canto da parte superior. Ela era magra, com uma estatura mediana, cabelos curtos, tocando levemente o ombro. Mas o que chamava mais a atenção eram os olhos verdes e brilhantes, que contrastavam com a escuridão da sala. Sentei na última fileira, mas no canto oposto da bela moça. A sessão iniciou sem mais delongas, sem nenhum trailer ou propaganda antecedendo a exibição. Esse tipo de coisa acontece quando a sessão está vazia. O filme começou, e sinceramente não era o tipo de entretenimento que eu precisava neste dia. Os minutos iam passando e os olhos cansados iam cedendo à tentação do sono. Meia hora se passou quando finalmente encostei a cabeça na poltrona vazia ao lado e adormeci.

Acordei uma hora e meia depois. Tudo estava escuro, logo ao abrir os olhos não conseguia enxergar um palmo a minha frente. Um silêncio mórbido preenchia a enorme sala. Eu estava sonhando? Não, poderia ser mais descrito como um pesadelo. Eu ainda estava na sala de cinema, eram quase duas horas da manhã, o cinema estava fechado e eu preso dentro daquela sala. Os tempos áureos do Imperial eram coisa do passado, pelo visto até os funcionários acompanharam a decadência e não foram capazes de ver que ao fundo da sala alguém estava dormindo. Puxei o celular do bolso, tentando iluminar alguma coisa a minha frente. Caminhei até a saída e constatei que a porta realmente estava trancada. Para piorar a situação o celular não tinha sinal, chamar por ajuda estava fora de questão. Quando fiz o trajeto de volta para a poltrona vi que eu não era o único na mesma situação. No lado oposto ao meu estava a bela jovem, dormindo. Toquei levemente no seu ombro, tentando acordá-la, e com um susto ela despertou:

- Ahn? O que aconteceu?
- Olha, tu dormiu durante o filme.
- Dormi?
- Sim, mas se serve de consolo não foi a única. Eu também dormi e só fui acordar há poucos minutos. Tenho más notícias, estamos trancados aqui na sala.
- Como assim trancados?
- O cinema fechou, e o incompetente do funcionário provavelmente não nos viu aqui no fundo.
- Meu Deus, inacreditável!

Alguns minutos se passaram até que finalmente nos recuperamos do baque e nos acostumamos com a ideia de que teríamos que passar uma noite inteira trancados em uma sala de cinema. Duas pessoas que pareciam habituadas a frequentar aquele ambiente sozinhas estavam desfrutando de algo que não estavam acostumadas: companhia. Com um toque de curiosidade na voz fui indagado:

- Então, como você conseguiu dormir no filme?
- Bah, sinceramente não era o tipo de filme que eu precisava pra hoje.
- Eu também não estava muito no clima, mas era a única sessão disponível.
- Eu precisava sair de casa hoje e cinema é sempre uma das minhas primeiras opções.
- Pra mim também! Não passo uma semana sem ver algum filme no cinema.
- Sabe, filmes são meus companheiros. Sempre quando eu preciso pensar na vida, em relacionamentos, pra onde as coisas estão indo, sempre quando me deparo com isso escolho um filme pra me acompanhar. Filmes são como uma terapia, sabe!
- Se sei, tenho uma relação parecida. Não só com filmes, mas com livros também.
- Eu tenho alguns filmes que eu chamo de “filmes muleta”.
- Filmes muleta???
- Sim, são aqueles filmes que eu sempre recorro e revejo quando preciso pensar em algo.
- Ah é? E que filmes seriam esses?
- São três! “Alta Fidelidade”, “Sideways – Entre Umas e Outras” e “Encontros e Desencontros”.
- Nossa, adoro “Encontros e Desencontros”! A Sophia Coppola é demais! E o Bill Murray está fabuloso nesse filme!
- Bill Murray é o cara, até quando aparece pouco ele rouba a cena.
- É? Está falando especificamente do que?
- De “Zumbilândia”.
- Não vi esse filme ainda!
- É um filme de zumbis misturado com comédia, mas não é tão bom quanto “Todo Mundo Quase Morto”.
- Ah, esse eu vi. Engraçadíssimo!
- Mas meu filme preferido do Bill Murray é “Feitiço do Tempo”, nem todo mundo lembra desse filme quando se fala nele, mas sei lá, adoro esse filme.
- Ah, é bem legal mesmo! Acho que o Bill Murray foi muito injustiçado quando não levou o Oscar por “Encontros e Desencontros”, fiquei muito triste aquela noite.
- É! Coisa parecida aconteceu quando o Paul Giamatti não levou o Oscar de melhor ator por “Sideways”, aliás, nem indicado ele foi.
- Poxa, vou te confessar uma coisa, não vi esse filme.
- Não??
- Não...rsrsrs
- Nossa, esse filme é demais. Alías, seria um filme perfeito para assistirmos agora, mas teríamos que ter um bom vinho para nos acompanhar.
- Um vinho?
- Sim, é que a trama se passa nos vinhedos da Califórnia. São dois caras, um que vai casar em uma semana e outro que se divorciou há um tempo só que ainda não superou o trauma. Aí os dois resolvem fazer uma viagem para esses vinhedos, e entre romances e degustações de vinhos muita coisa acontece. Só que esse filme tem tantos significados sabe, cada vez que assisto me dou conta de uma coisa nova.
- Nossa, do jeito que tu fala parece imperdível! Será o primeiro filme que verei quando sairmos daqui.
- E “Alta Fidelidade”, tu já viu?
- Ah, eu adoro os livros do Nick Hornby, mas não gosto muito das adaptações para a tela.
- Ah, “Um Grande Garoto” ficou bizarro, aquele final totalmente diferente do livro acabou com o filme. Mas eu gosto do “Alta Fidelidade”, ficou mais fiel. Eu já li o livro quatro vezes e o filme devo ter visto umas doze vezes, no mínimo.
- Nossa!!! Eu gosto de “Alta Fidelidade”, mas só li e vi o filme uma vez.
- Esse livro sempre foi a minha bíblia de relacionamentos. Quando precisava pensar no que fazer, em como as coisas andam, sempre recorri a ele.
- Uau! Nunca parei para pensar nesse livro desta maneira.

As horas corriam pela madrugada, e o papo cada vez mais agradável me fazia esquecer que estava trancado em uma sala de cinema. Naquele momento, o que importava era ela, com aquele olhar de quem realmente estava interessada no que eu tinha a dizer. Esse era um daqueles momentos mágicos, quando se conhece alguém e se escuta um “clic” imaginário, que no fundo nos diz que as coisas estão se encaixando e dando certo. Entusiasmada, ela continuou a conversa:

- Melhor trilogia de todos os tempos?
- Ah, com toda certeza a primeira do “Guerra nas Estrelas”!
- Ah, tu vai querer me matar, mas eu sempre gostei mais de “Jornada nas Estrelas”.
- Bah, estou preso em uma sala de cinema com uma “trekkie”, quem diria!

Ela gargalhou durante uns 20 segundos, nem eu acreditei que uma piada totalmente nerd tinha funcionado com uma garota.

- Mas a minha trilogia preferida de todos os tempos com certeza é “O Poderoso Chefão”.
- Opa! Don Corleone é um dos meus personagens favoritos no cinema! O Marlon Brandon é o cara!
- Mas sabe de uma coisa, eu sei que pode soar estranho, mas eu prefiro a segunda parte da trilogia!
- Sério?
- Sim!
- Nossa, não é sempre que escuto essa opinião. Pensei que fosse unânime que o grande filme fosse o primeiro!
- Pois é, sou meio estranha às vezes!

Ela se chamou de estranha, mas para mim ela era como eu. Claro que não tinha as mesmas opiniões em tudo, mas sabíamos compartilhar o momento e dividíamos uma visão parecida da importância de um filme na vida de uma pessoa. No final, quando o cansaço cedeu para o sono, dormimos abraçados. Nada aconteceu naquela noite, apenas a promessa de que no futuro nem todas as sessões de cinema seriam solitárias.

3 comentários:

Fabiano Mascarenhas Vianna disse...

Hey man! Cara, ficou ótimo! Este motivo que os levou a ficarem presos ficou ótimo! Tudo é bem convincente e quase posso ver o filme deste conto. Os diálogos estão muito bons, de vez em quando um contradizendo o outro. Opiniões diferentes, isso deu muita realidade à conversa. Gostei do caminho que você escolheu para o final também. Foi leve e nada clichê, com os 2 abraçados. Se entregaram na luta contra o sono juntos. Este fim deu uma perspectiva positiva, coisa que não acontece em seus outros contos. Acho que você ousou bastante neste e foi bem sucedido em sua nova aventura! Outra coisa que reparei é que seu sotaque gaúcho ficou mais evidente nos diálogos. Hehe Demais! Pode até rolar continuação hein. Hehe Abração man!!

Carolina Tessmann disse...

Obrigada Rafael! Continua escrevendo, viu? Não pára, estamos(estou) atentos(atenta) ao que vale o elogio.
bjs

Fernanda Rickmann disse...

Adoro Bill Murray e Encontros e Desencontros faz parte da minha lista, assim como Alta Fidelidade também, Um Grande Garoto... O texto tá super. Concordo com o termo “filmes muleta”, servem para inspiração e outros embaraços da vida. Parabéns Rafa, não para nunca, você voltou com muito gás!