quarta-feira, junho 03, 2015

Cecília


Por Rafael Pesce
* Ilustração: Daniel Gonçalves

Pela pequena janela circular o sol adentrava naquele sótão. Minúsculas partículas de poeira trafegavam pela luz, como se estivessem sendo abduzidas para o mundo exterior. Uma cama, desnuda de lençóis e sem o ranger das precárias estruturas de ferro, estava localizada logo na entrada. Um pônei de madeira jazia, imóvel, no outro lado, sem ter mais com quem brincar. A caixa de música, que costumeiramente enchia o ambiente de alegria, trancava-se em solidão. As roupas, antes banhadas pela claridade e pelo vento, estavam esquecidas em um velho armário. Os brinquedos, jogados de forma aleatória, tornavam o chão irregular. Mas no centro de tudo estava ela, Cecília, abandonada pela vida e pela sanidade do pai, que a deixou na escuridão daquele baú.

sábado, agosto 30, 2014

O Cemitério de Ideias


Por Rafael Pesce
* Ilustração: Hafaell Pereira



O ano era 2556. O clima na sala do Imperador Drextos II era de tensão. À frente do trono, cravejado por diamantes roxos, estava uma mesa redonda, onde os mais importantes generais, cientistas e conselheiros imperiais estavam sentados. A ausência de som foi quebrada quando o Imperador levantou-se. O ouro da extravagante túnica chacoalhou, interrompendo o mórbido silêncio. Foi o sinal que todos esperavam. Em um grito uníssono todos bradavam com a mão em sinal de continência: Vida longa ao Imperador! Vida longa ao Imperador! Vida longa ao Imperador!

- Quietos! Já chega seus vermes! Já faz quase um ano que estamos no meio dessa guerra contra essa horda de rebeldes que insiste em não reconhecer o meu poder absoluto. Convoquei essa reunião para acabar de vez com a baderna que insiste em atrapalhar meus planos. Eu exijo uma solução imediata para este problema!

O primeiro a se levantar foi o General Horxos, responsável pelo comando de todas as tropas imperiais. Entre uma gaguejada e outra encontrou coragem para se manifestar:

- Oh co-co-comandante supremo. Eu, eu...já não sei mais o que fazer. Mando diariamente nossas tropas combaterem esses insurgentes, mas quanto mais lutamos mais o inimigo parece se fortalecer. Não importa o que façamos, os rebeldes parecem sempre estar um passo a nossa frente. Eles não têm medo, não desistem nunca. Usamos toda nossa força, todo nosso arsenal e parece que nada os faz desistir. Eles não são simples homens, não sei o que os faz continuar.

- Tolo! – respondeu o Imperador. Eu não convoquei esta reunião para escutar desculpas. Estou aqui para ouvir uma solução. Se eles não entendem por bem a necessidade de nossos altos impostos, que entendam por mal. Saia daqui, insolente!

Horxos não teve tempo suficiente para abandonar o recinto. Um gesto foi suficiente para que dois soldados, que até então permaneciam imóveis na entrada, atravessassem suas lanças laser nos pulmões do agora ex-general. As risadas de Drextos II ecoaram sozinhas pela sala. O encontro então prosseguiu:

- Trevor, você era o segundo em comando. O controle de nossas tropas agora está em suas mãos. O que você pretende fazer para retomar a ordem?

O novo General em nada lembrava seu antecessor. Era uma pessoa confiante, que não demonstrava medo e não evitava o olhar penetrante do Imperador.

- Grato pela oportunidade de mostrar o meu valor, oh grande Imperador Galáctico! Como todos sabem, temos um arsenal muito mais forte do que aqueles pobres rebeldes. Eles parecem um bando de ratos. Esmagamos um, mas no lugar desse, aparecem dois. E isso tudo porque eles têm uma ideia coesa por trás. Seus líderes conseguem manter o que, inicialmente pode parecer uma multidão desorganizada, em uma forte arma de repressão. Enquanto não exterminarmos essas cabeças, não acabaremos com a força por trás desta ideia absurda de rebeldia.

O Imperador sentou-se no trono e pareceu intrigado com a afirmação de seu novo general. – O que nos impede de terminarmos de vez com essas patéticas vidas?

- Infelizmente essa corja rebelde desenvolveu um escudo defletor capaz de bloquear qualquer ataque proposto por nossas tropas. Existem apenas cinco desses escudos, e eles estão justamente divididos entre esses líderes. Ainda não conseguimos descobrir uma maneira de furar esse bloqueio.

- O Imperador Drextos II se levantou exaltado. – Não acha que é muito cedo para vir com desculpas? Já disse que exijo soluções, SOLUÇÕES!

Antes que Trevor pudesse responder, uma voz, um pouco trêmula, e já entregando a idade, pediu a palavra. Era o Dr. Strengler, um velho cientista que estava no canto mais distante da mesa.

- Caro Imperador, general e demais presentes. Não precisamos necessariamente matá-los. Como Trevor bem disse antes, sem um ideal a tentativa de revolta estará morta. Tudo o que precisamos é estancar de vez esses poços de ideias.

- E como isso será possível? – indagou Drextos II.

Calmamente o cientista respondeu. - Há anos venho trabalhando em um projeto secreto que recentemente viu a luz do dia. Estava esperando a oportunidade certa de usá-lo. – O cientista puxou de dentro de uma bolsa o que aparentava ser um pequeno rifle laser. – Isso, meus caros, não é o que parece. Em uma primeira olhada pode dar a impressão de ser uma arma letal, dessas que desintegram o inimigo. Mas não, não é isso que ela faz. Ela é o que eu chamo de Nápad. E qual sua utilidade, vocês me perguntarão. Respondo: Ela extrai ideias.

Todos os presentes na sala de reunião arregalaram os olhos. Um burburinho de palavras indecifráveis se criou no ambiente. SILÊNCIO!!! – gritou o Imperador. Continue a sua explicação Dr. Strengler.

- Com sua licença, oh grande Imperador. Tudo o que preciso é programar o dispositivo para extrair toda e qualquer ideia relativa à rebelião. Como ela não é uma arma de ataque, garanto que não há escudo no mundo capaz de impedir a sua funcionalidade. Basta apontar, apertar o gatilho e pronto. O pensamento será apagado da mente do inimigo e a possibilidade de regenerar tal ideia ficará impossibilitada, graças aos efeitos do Nápad.

Em meio às gargalhadas eufóricas o Imperador repetia: - Ótimo doutor, ótimo, ótimo! Dessa maneira iremos aniquilar para sempre essas ideias ridículas.

- Meu caro Imperador, ideias não podem ser destruídas. Como eu disse anteriormente, o meu aparelho as extrai, não as elimina. Uma vez arrancada ela tomará uma forma física e ficará retida nesta cápsula redonda. Não se engane com o tamanho, se este aparentemente inofensivo receptáculo for perdido, as ideias poderão retornar para seus donos. Para evitar o pior, sugiro a criação de uma sala blindada, com toda a segurança necessária para que esses pensamentos jamais voltem a ter vida.

Drextos II finalmente sorriu aliviado, esvaziando a tensão que ainda preenchia o ambiente. Olhou para todos e falou: - Um cemitério de ideias...gostei! Construam essa tumba de aço imediatamente!






quinta-feira, julho 31, 2014

Criado Mundo



Pessoal, estou com uma série de artigos no Criado Mundo. Tem muita coisa boa por lá: música, cinema, literatura, quadrinhos...confere lá!

Site Oficial: www.criadomundo.com.br

Para acessar diretamente meus artigos: http://criadomundo.com.br/category/rafael-pesce/

quinta-feira, outubro 25, 2012

O Dia V


Por Rafael Pesce
Ilustração: Francisco Gusso

O dia 6 de junho de 1944 ficou conhecido como o Dia D, o golpe final das tropas aliadas contra o regime nazista de Adolf Hitler. Mais de 155 mil homens dos exércitos americano, britânico e canadense lançaram-se em um ataque nas praias da Normandia, na França. Para os livros de história foi o começo do fim da Segunda Guerra Mundial, mas para mim, foi o início de uma nova vida, um ciclo que desbravaria a eternidade.

Meu nome é James McCovil, mas meus companheiros me chamavam de Jim. Fui casado com uma linda garçonete de nome Margareth, com a qual tive dois filhos. Deixei minha família no longínquo estado do Texas após meu alistamento militar em 1940. Tornei-me cabo do exército americano, pertencente ao 83° Regimento de Infantaria. Junto com centenas de milhares de soldados fiz parte da ofensiva na Normandia.   

Daquele dia me lembro da tensão constante. O olhar perdido de alguns companheiros contrastava com o sangue nos olhos de outros. Estávamos todos preparados para morrer, sem medo de nosso destino. Os tiros e explosões chegavam mais perto a cada metro que o barco se aproximava da praia. Não demorou muito para as primeiras embarcações serem explodidas. Nessa hora, apenas olhava fixamente para frente, rezando para a próxima bala não atingir meu corpo. Assim que minhas botas tocaram os primeiros grãos de areia, corri em busca de um ponto de defesa. Nossa companhia foi uma das primeiras a desembarcar. Tínhamos a missão de tomar dois morteiros localizados no norte da praia, facilitando, assim, a locomoção das tropas. Dividimos nossa força. Vinte homens avançaram em lados opostos na tentativa de surpreender o inimigo. Fiz parte do ataque pelo flanco leste. Costeamos o alvo, em bloco. Tudo parecia correr como planejado, mas foi então que ouvi gritos por perto. Meus dois companheiros da direita caíram após tiros certeiros, que perfuraram seus capacetes sem dificuldade. Pouco tempo depois outros três combatentes foram alvejados, antes que pudessem reagir. Percebi que havíamos caído em uma emboscada. A partir deste momento o terror tomou conta do resto da tropa. Sem saber o que fazer, tentei correr o mais rápido possível em busca de algum abrigo momentâneo. Enquanto minhas pernas tentavam carregar o meu corpo, ainda infectado pelo pavor, ouvi um zunido. Na minha frente caiu uma granada. Booooooooooooooooom! Barulho ensurdecedor e falta de visão total.

*  *  *

Acordei em uma cama simples, de madeira. Tentei me levantar, ainda assustado, quando a vi: uma linda mulher, de pele branca e longos cabelos negros que envolviam seus ombros como uma espécie de manto. O olhar dela me petrificou, mas o sorriso, tímido no canto da boca, me passou certa tranquilidade. Ela parecia um anjo. Pensei que estava morto, só poderia estar no céu. Era a única explicação possível.

- Sente-se bem? – Perguntou a mulher calmamente.
- Minha cabeça dói. Onde estou? O que aconteceu comigo? – Um ruído insistente ainda passeava pela minha cabeça.
- Digamos que você está a salvo...
- Quem é você?
- Meu nome é Annabel. Sou uma enfermeira, quer dizer, eu era uma enfermeira. Mas ainda sei como cuidar de um soldado.
- Como assim? Estou em um hospital militar?
- Não, essa é a minha casa. Fique tranquilo, as poucas pessoas que cruzam minha porta estão a salvo.

A cabana era escura, pouco ventilada. Apenas uma janela, não muito grande, permitia um vislumbre da parte externa da casa. Alguns móveis, gastos pela ação do tempo, ornamentavam o lugar. Era noite, um estranho silêncio insistia em me manter calmo. Memórias antigas apareciam como flashes na frente dos meus olhos. Neste momento, pensei na minha terra natal, em tudo que tinha ficado para trás. Uma lágrima escorreu em meu rosto. Annabel não entendia o porquê daquilo.

- Você está bem soldado?
- Sim, apenas lembranças do passado. Esses pensamentos sempre me assombram.
- Fantasmas. Fantasmas de outrora. Diga-me, o que o atormenta?
- Minha mulher, Maggie. A deixei nos Estados Unidos. Nosso casamento não ia bem, desconfiava que ela me traísse. Diziam que muitos homens do bairro experimentaram dos prazeres dela. Não conseguia encontrar mais emprego. O dinheiro se tornou escasso. Talvez seja por isso que ela tenha buscado a felicidade nos braços de outros homens. Na época não queria acreditar, mas alguns anos de solidão na guerra foram suficientes para abrir meus olhos. Se algum dia eu voltar para meu país sei que ela estará com outro. E as crianças?  Meu Deus! Christopher tinha quatro anos quando parti. Não tive nem tempo de jogar baseball com meu filho. Annie tinha apenas um ano, perdi os primeiros passos dela. Hoje os dois nem se lembram do pai que um dia tiveram – a intensidade das lágrimas aumentou neste momento, mas continuei a falar - A guerra é uma fuga. Claro, queria ajudar meu país, mas cruzar o mar e pegar em armas foi apenas uma desculpa para escapar de uma realidade que me trazia tormento. Agora, tudo que penso é terminar com essa guerra e matar o máximo de nazistas que eu puder. Quem sabe um dia eu consiga viver em paz comigo mesmo.

Annabel estava com uma expressão consternada. Por um momento pensei que ela iria chorar. Mas a pele pálida permanecia imóvel. Alguns segundos silenciosos inundaram o ar até ela finalmente responder:

 - Eu sei como você se sente caro soldado. Minha guerra não foi essa, muito menos a antecessora, mas do outro lado também estavam os germânicos. Uma guerra entre a França e a então Prússia. Os homens lutaram bravamente na frente de batalha. Para nós, mulheres, sobrava o trabalho de cuidar dos feridos. Perdi meu marido e dois irmãos na Batalha de Sedan. Infelizmente, ou felizmente, Deus nunca me deu a chance de ter um filho. Estava completamente sozinha no mundo. Quando a guerra terminou, sobrou pouca coisa para o lado perdedor, no qual eu me encontrava. Sem ver sentido em minha vida, tentei me matar. Pendurei uma corda em uma árvore, coloquei-a no meu pescoço e esvaziei a mente. Tudo deveria estar acabado em poucos segundos. Mas um salvador apareceu e deu uma benção que me salvou. Terminar com minha vida não era mais uma opção. Uma nova sede tomou conta do meu corpo. Durante muito tempo passei a perseguir qualquer prussiano que estivesse envolvido na antiga guerra. E isso me satisfez por um tempo. Com o passar dos anos fui procurando motivações, desafios e...almas para compartilhar esses momentos.

Fiquei paralisado perante o relato de Annabel. Nunca fui um grande conhecedor de história. Sinceramente não sabia nem quando ou por qual motivo essa outra guerra havia acontecido. A aparência jovem de minha anfitriã indicava que o conflito não ocorrera há muito tempo. Era o que eu pensava.

- Soldado, você pode ver que os martírios da guerra não foram apenas um escape para você.
- Eu sei, vejo isso claramente. Queria fazer esse vazio sumir. Sinto um buraco negro crescendo e tomando conta de cada centímetro do meu corpo. Não sei mais o que pensar, nem o que fazer. – Nesse momento as lágrimas verteram de ambos os olhos, incessantemente. 
- Acho que só tem uma solução para isso. Estou pronta para lhe dar uma bênção que há um século me foi ofertada.

Quando olhei para Annabel, sua expressão havia mudado. O sorriso, antes belo, ganhou duas presas, que contrastavam com a penumbra da noite. Ela mordeu o meu pescoço, e antes que a última lágrima tocasse o chão, eu me encontrava inconsciente. Os próximos dias foram de agonia e sofrimento, mas após esse teste do tempo eu estava pronto. Não sentia mais dor, apenas uma sede constante por sangue.

sexta-feira, julho 27, 2012

A Casa dos Segredos


Por Rafael Pesce
Ilustração: Theo Szczepanski

Vum Vum Vum Tec Vum Vum Vum Tec Vum Vum Vum Tec...o barulho do velho ventilador o despertou. O quarto era mal iluminado, com apenas uma cama de solteiro coberta pelo pó. Ao lado, uma pequena cômoda com um telefone antigo. Uma televisão 14 polegadas, com alguns botões faltando, completava a decoração. Na porta, um chaveiro escrito HOTEL MIRANTE entregava o lugar em que acordara. Como ele havia chegado ali ainda era uma incógnita. No corpo, uma camisa de cetim, uma calça jeans desbotada e um relógio quebrado. No chão, um par de sapatos com as meias ainda dentro. Levantou da cama, ainda um pouco zonzo. Não fazia a mínima ideia de como chegara ali. Lembrava apenas do seu nome, Victor. Profissão? Família? Namorada? Nada, nada aparecia em sua mente, apenas um grande vazio preenchido por uma sensação de estranheza. Colocou as meias e o sapato, abotoou a camisa e ao se levantar sentiu um leve peso em um dos bolsos. Puxou um cartão. Nele estava escrito: NIX – CASA DE PENHORES – Rua Imperador de Jade, 14. Era uma pista, a única que tinha.

A cidade era desconhecida. Parecia grande, já que prédios pipocavam por todos os lados. Entrou em uma cabine telefônica em busca de uma lista. Procurou pelo nome da rua, mas ela não constava em nenhuma das 500 páginas. Olhou novamente o cartão para conferir se não havia se equivocado. Mas era isso mesmo, Rua Imperador de Jade, inexistente aos seus olhos. Caminhou por mais algumas quadras. Seguiu o caminho onde o cheiro era pior, parecia lógico para ele. Acabou em uma pequena travessa. Lá, mulheres dos mais diferentes tipos vendiam o corpo. Abordou algumas delas e perguntou se sabiam da existência da rua misteriosa. Todas foram unânimes em dizer que não, com uma convicção assustadora. Estava sem rumo. Resolveu sair daquele lugar, mas foi interrompido por um toque no ombro. A responsável foi Labelle, uma prostituta ruiva e obesa, que calmamente sussurrou nos ouvidos de Victor:

- Meu amor, todo mundo que vive no submundo sabe da existência dessa rua. Mas chegar até lá é algo que muitos têm medo... medo até de pensar. Querido, você me parece alguém que não vai desistir até encontrar o que procura. Por isso, pegue o metrô até a estação Policarpo, vá em direção à saída sul e ande três quadras. Lá estará o bar Potus, um lugar onde respostas podem ser encontradas...

Labelle piscou com o olho direito, deu um tapa de leve na bunda do rapaz e colocou algumas notas e moedas no bolso da camisa de Victor. O metrô demorou 15 minutos para chegar até o destino. A caminhada até o bar foi apressada. O estabelecimento era pequeno, podia passar despercebido pelos olhos mais desatentos. Na entrada, um letreiro em néon, mas apenas a letra P ainda exibia alguma luz. Desceu uma pequena escada que o levou até o leão de chácara, mal-encarado. Entrou sem pestanejar sob olhares desconfiados. No interior, uma dezena de pessoas se dividia entre o balcão e as poucas mesas. Ainda era cedo para um movimento maior. No palco, uma banda de barbados cantava uma versão arrastada de “Woman From Tokyo”, do Deep Purple. Sentou no balcão e pediu o drink mais barato do menu. O barman, um velho carrancudo com tatuagem do Charles Bronson no braço direito, o serviu. Com o copo cheio, Victor foi direto ao ponto: “Rua Imperador de Jade, 14”. O braço tatuado apontou para uma mesa localizada no canto mais obscuro do bar. Lá estava sentando um anão. Ele exibia traços asiáticos e vestia um terno e chapéu que pareciam saídos da Chicago dos anos 20. Cheng era seu nome. Duas loiras robustas, em vestidos mínimos, o acompanhavam. Compenetrado, Victor aproximou-se da mesa. O anão notou a expressão séria que o encarava e mandou as duas companheiras se afastarem.

- Rua Imperador de Jade, 14. O que você sabe?
- Calma garoto, calma. Informações como essa tem um preço. Você acha que é barato pagar por belezuras como aquelas duas? O que você tem a me oferecer hein garoto?!
- Isso!!!!!!

Victor desferiu um soco tão rápido que pegou Cheng sem nenhuma reação. O anão foi derrubado da cadeira, batendo a cabeça no chão. A confusão despertou a ira dos frequentadores do bar, que partiram para cima do brigão. Um a um foram caindo após sequências de chutes, socos, cabeçadas e voadoras. Com todos já sem capacidade de reação, Victor voltou a interrogar o charlatão:

- A rua, agora! Você tem três segundos para me dizer antes que sua cara fique tão feia que nenhum dinheiro no mundo vai fazer uma puta te aceitar...
- Calma, calma...calma garoto. Eu digo! Eu digo! Essa rua fica em um lugar onde ninguém vê, pelo menos não claramente. Vá até o centro da cidade, em direção à praça José Bonifácio. Procure pela Lavanderia Yin-yang, você encontrará o que procura lá... agora vá, me deixe em paz, por favor...

Victor surrupiou o dinheiro da carteira do anão e saiu do bar. Pegou um táxi e rumou até o centro da cidade. Desceu perto de um calçadão e começou a procurar pelo estabelecimento. Não demorou muito e encontrou a lavanderia. Ela ficava em um local pouco visível, em uma rua secundária. Victor parou em frente à porta. Nenhuma luz aparente. Tentou a maçaneta. A porta estava aberta. Entrou no lugar e...

...lá dentro não havia máquinas de lavar roupa, nem secadoras, nada. A entrada dava acesso à outra rua. Imperador de Jade, apontava a placa. Lateralmente vislumbrou mais de uma dezena de portas. Procurou pelo número 14 e lá estava, NIX – CASA DE PENHORES. A porta era de madeira, antiga, com alguns buracos denunciando a ação do tempo. Entrou sem bater. Caminhou por um pequeno corredor até chegar ao que parecia ser uma recepção. No balcão, uma senhora idosa, certamente com mais de 70 anos. Ao fitar Victor, os olhos dela arregalaram-se. Começou a tremer e a gritar: “Meiying, Meiying, Meiying”. De uma ante-sala saiu uma mulher, mais jovem. Igualmente assustada, balbuciou uma indagação:

- Não...n-n-não funcionou senhor? O que você faz aqui? – As palavras saiam tremidas, quase incompletas.
- Como assim? Do que você está falando?
- Você não lembra? – a voz agora aparentava uma maior calma.
- Acordei em uma pocilga, sem lembrar de nada, apenas com este cartão no meu bolso. Que diabos aconteceu comigo?
- Senhor...é melhor me acompanhar.

Victor dirigiu-se com as duas mulheres até uma pequena sala. Lá, um velho ancião estava sentado no chão com os olhos fechados, entoando cânticos em uma língua estranha. Ao lado, um pequeno fogão improvisado esquentava uma chaleira com água. Ao perceber movimento, o anfitrião levantou as pálpebras.

- Hum...você voltou! O trabalho não funcionou?
- Ele não sabe o que aconteceu, está desnorteado. Procura respostas, urgentes. Parece que não vai desistir até as encontrar – respondeu a mais jovem das mulheres.
- Hum...e você meu jovem, tem certeza que quer descobrir o porquê de tudo?
- Vamos velho, me fale logo o que aconteceu comigo!
- Bem, como você já deve ter percebido essa não é uma Casa de Penhores. De segredos, talvez. O conhecimento da existência desse lugar é privilégio para poucos. Mas bem, o que eu faço aqui meu jovem, é uma arte há muito tempo esquecida, uma arte que é passada de geração a geração. Neste recinto, os segredos das pessoas são guardados, muitas vezes até esquecidos. O fruto desse abandono é o alimento da nossa casa.

Victor não se sentia completo desde que acordara. O vazio interior crescia assustadoramente a cada segundo. Transtornado e sem ter certeza do que estava pedindo, deixou as palavras fluírem:

- Você tirou um segredo. Pode colocá-lo de volta?
- Hum....tem certeza que é isso que quer?
- Ou é isso ou é o fim da linha para mim, sinto um abismo se abrindo dentro da minha cabeça.
- Tudo bem meu jovem, sente-se aqui.

Victor acocorou-se ao lado do ancião. A água que estava esquentando, a essa altura já estava fervida. O velho pegou uma caneca e colocou algumas ervas dentro. Sovou todo conteúdo e misturou com o líquido.

- Agora beba, isso é tudo que precisa fazer.

Tremedeiras, suor excessivo, barulhos estranhos...tudo começou a girar. Victor pensou que estava morrendo, mas a visão que teve era pior que a morte. Tudo estava preto e branco. Um a um seus demônios interiores foram aparecendo. Vidas passadas, há muitos séculos esquecidas, foram desfilando na frente de seus olhos. Em meio a um assombroso passado, reis, rainhas, bruxas e criaturas da noite ganhavam contornos sanguinários. O protagonismo da mão que empunhava os instrumentos da morte era sempre de Victor. As imagens percorreram o caminho do tempo até chegarem à década atual. O panorama continuava o mesmo, apenas com uma gama diferente de vítimas. Pouco mais de 20 minutos de um tormento quase insuportável se passou. Victor levantou-se, agora com a convicção de quem realmente era, e saiu daquele lugar. Três corpos foram deixados para trás, com a certeza de que certos segredos não devem ser nunca esquecidos.

segunda-feira, julho 09, 2012

Judicare



Por Rafael Pesce
Ilustração: Dea Lellis

O microônibus da empresa Troma partia diariamente de São Horácio levando 12 trabalhadores para a fábrica de torneiras elétricas, localizada nas imediações do município vizinho de Nova Budapeste. Apesar das condições precárias da estrada de chão, os 14 km percorridos eram tranquilos.  O dia 9 de Julho tinha tudo para ser como qualquer outro. Mais uma jornada de trabalho na vida de Alastor, operário dedicado, marido e pai de duas filhas; de Rebeca, consultora de RH; e de Norberto, chefe de segurança e notório mulherengo, famoso nos bordéis da cidade. Como faziam todos os dias, os três pegaram o transporte na frente da prefeitura, e embalados ao som das notícias da rádio Romero iniciaram o trajeto rumo à empresa.

O movimento entre São Horácio e a fábrica era escasso. Pouquíssimos carros passavam por aquela estrada, em sua maioria trabalhadores rurais levando produtos para vender nas cidades vizinhas. O microônibus seguia sossegado, sem ultrapassar a velocidade permitida. Seu Moacir, o motorista, era um homem precavido. Vangloriava-se do fato de nunca ter levado uma multa na vida. Prezava a segurança acima de qualquer coisa. Mas nem sempre isso é suficiente.  

O veículo prosseguia normalmente, mas após fazer uma curva relativamente simples se deparou com um carro funerário, daqueles enormes, como se fosse da década de 20. Seu Moacir não soube de onde o outro veículo surgiu. Em um momento a estrada estava livre, no outro, não. Foi a última coisa que ele pensou. O microônibus, na tentativa de desviar rapidamente do obstáculo, capotou. O choque foi violento. Gasolina vazava abundantemente. Alastor olhou para o lado e viu companheiros de trabalho já sem vida. O metal cortou algumas partes dos corpos. O cenário era de terror e o perigo de explosão, eminente. Sem muito tempo para pensar, o operário conseguiu tirar o cinto de segurança e sair daquele caos. Um minuto depois e.......BUUUUUUUUUUM!!!!!! Fogo e cheiro de morte. Mas Alastor não tinha sido o único a escapar do acidente. Norberto e Rebeca saíram ilesos das ferragens.

Poucos quilômetros separavam os sobreviventes da fábrica. Os três trabalhadores iniciaram o percurso para pedir socorro. Não deveria demorar muito tempo, o trajeto a pé levaria em torno de duas horas. Passaram-se três horas e nada. A rota já não parecia a mesma. Caminharam por mais meia hora até que se depararam com uma casa velha, quase na beira da estrada. Acharam estranho, pois no trajeto diário nunca haviam visto aquela moradia. Resolveram tentar a sorte e foram para lá em busca de ajuda.

O portão era antigo, de ferro, com pontas afiadas. No centro, uma palavra talhada: JUDICARE. A ferrugem e tipografia das letras denunciavam a idade do casarão. Os três entraram no jardim um pouco receosos. Não foi preciso mais do que 15 passos para chegarem à entrada. Uma argola de ouro servia como campainha. Norberto bateu cinco vezes, sem resposta. Impaciente, Rebeca forçou a maçaneta e constatou que a porta não estava trancada. Um enorme salão abriu-se à frente dos três sobreviventes. Mobília antiquada, teias de aranha e quadros que pareciam retratar antigos barões do café ornamentavam o local. As paredes estavam todas pichadas com palavras sem sentido para os visitantes: ratio, placitum, iudicium, decretum, consilium, censura e arbitrium. Rebeca aparentava estar assustada. Alastor estava calado, apenas observava tudo. O afobado Norberto saiu bufando e gritando: “que porra de lugar é esse, vou encontrar alguém nessa merda aqui é agora”. O chefe de segurança subiu as escadas e desapareceu rumo ao segundo andar, antes que os dois pudessem falar algo. No hall de entrada um detalhe chamava a atenção, quase tudo parecia duplicado. Alastor esfregou as mãos nos olhos, mas era isso mesmo, lá estavam duas mesas, duas cadeiras, duas estantes de livros, dois tapetes, até mesmo dois telefones antigos, um ao lado do outro. Norberto estava demorando, preocupando os demais. Resolveram procurar o colega, mas quando Alastor estava prestes a dar o primeiro passo em direção ao degrau, uma menina apareceu. Ela devia ter em torno de 11 anos e estava acompanhada por um gato cinza. Ouviu-se um miado, e em seguida um grito. No flanco esquerdo da sala, Norberto jazia enforcado. A garota desapareceu. Rebeca chorava compulsivamente e gritava: “nós vamos morrer, nós vamos morrer”. Correu até a porta de entrada, mas estava trancada. As janelas fecharam-se subitamente. Descontrolada, rumou em direção a outro cômodo da casa. Alastor, nervoso, preferiu permanecer ali.

Uma hora se passou. Nenhum sinal de Rebeca. A casa repousava em quase completo silêncio. O único barulho presente era do corpo de Norberto, ainda balançando. O cenário de solidão apenas se modificou quando a misteriosa criança e seu animal de estimação apareceram novamente. O operário abriu os olhos, assustado, e começou a persegui-la. A brincadeira de pega-pega só terminou quando Alastor chegou a um banheiro. Mas, ao invés de encontrar a menina, quem apareceu foi Rebeca, afogada em uma banheira que mais parecia uma piscina de sangue. Espavorido, o trabalhador, aos tropeços, correu para o primeiro lugar que o nariz apontou. Tentou novamente a porta de entrada, mas ela continuava trancada. Chutou e esmurrou com toda força as janelas, mas elas permaneciam imóveis. Resolveu subir para o segundo andar, único lugar que ainda não havia tentado. Fez isso e correu para a direita, onde avistou uma escada que parecia dar acesso a uma espécie de sótão, levemente iluminado por uma luz amarela. Seguiu este caminho e chegou a uma sala verde. Deu de cara com um piano enorme, e notou aquele mesmo padrão de objetos gêmeos. O lugar parecia abandonado. Doce engano. De trás de uma das cortinas saiu a menina misteriosa com seu gato. Uma luz irradiava da criança, mas a voz que conversou com Alastor veio do gato:

- Quem entra nessa casa não pode temer, pois o sol que ilumina a alma dos homens deve se apagar. Seja hoje ou amanhã, isso não cabe a você decidir...
- Não tenho mais forças, pode me matar – respondeu o operário conformado com o destino trágico.
- Cale-se! Quem é você para me dar ordens? Matar ou não matar, isso não depende de mim. O veredicto foi traçado ao longo da sua vida. Você não conhece a resposta? Pare de tremer e pense um pouco. No seu interior você já sabe, é por isso que eu estou aqui para sentenciá-lo.
- Eu não sei de nada. Sou apenas um trabalhador honesto, buscando uma vida melhor para minha família. Por que você matou meus colegas? Por quê? Me responda...
- Quem disse que os matei?

Neste momento, uma menina igual a que estava na frente de Alastor, saiu das sombras, permanecendo imóvel. A voz continuou seu discurso:

- Homem, esta é a Casa do Julgamento. A missão atribuída no casamento da luz e sombra é apenas uma: JUDICARE.  Agora vá e volte para sua família, a porta está aberta. Não tente retornar para esta casa nunca mais, pois encontrá-la será impossível.

O operário saiu assustado do casarão. Caminhou alguns quilômetros e dessa vez conseguiu auxílio facilmente. O microônibus foi encontrado com os corpos carbonizados. Alastor foi o único sobrevivente. Nos dias seguintes, a mídia começou a dissecar a vida dos acidentados. Descobriu-se mais tarde que Norberto era o rosto por trás do “Máscara de Ferro”, um Serial Killer de prostitutas procurado em toda região. Rebeca era responsável por um esquema de propina que beneficiava a contratação de trabalhadores indicados por vereadores da cidade. O dinheiro da fraude foi encontrado em uma conta fantasma. Os políticos envolvidos no escândalo estão, neste momento, em um microônibus, seguindo em direção a um escritório de advocacia na cidade vizinha de Nova Budapeste.

sexta-feira, abril 13, 2012

O Pintor de Itabuna


Por Rafael Pesce
Ilustração: Pedro Giongo

ITABUNA, SEGUNDA-FEIRA, 24 DE JANEIRO DE 2012

Polícia baiana prende o Pintor de Itabuna

Foi preso neste fim de semana o serial killer mais procurado da Bahia. O Pintor de Itabuna, como ficou conhecido o assassino, foi localizado em sua residência na noite de domingo, enquanto assistia ao Programa Silvio Santos acompanhado de 11 cabeças das vítimas que fez ao longo dos últimos seis meses. A identidade do criminoso é mantida em sigilo pela polícia por motivos de segurança. Sabe-se apenas que o homicida é um anão de 1,20m.
           
A história da série de assassinatos começou em julho de 2011, quando o empresário José Enrique López foi encontrado morto pela amante. A vítima encontrava-se sem a cabeça, e foi reconhecida através de uma tatuagem do Esporte Clube Bahia, localizada nas costas.  No local foi deixada uma folha A4 com o desenho do que supostamente parecia ser o rosto do falecido.  Porém, até os policiais especializados em desenho de retratos falados tiveram dificuldade na identificação dos traços do finado.

Após o primeiro crime mais uma dezena de assassinatos foram cometidos pelo Pintor de Itabuna, seguindo sempre o mesmo Modus Operandi: corpo sem cabeça e desenho da vítima no local. Além do empresário Zé López, foram vitimados os cinco integrantes do grupo de Axé universitário Arrastaxé, o casal de médicos Dr. Ulisses Nogueira e Dra. Fátima Homero, o repentista Noé dos Santos, o jornalista Ildo Roblan e a socialite Marisa Briacone, morta na última semana enquanto tomava banho de sol em sua mansão. Em comum as vítimas apresentavam o fato de terem pintado suas residências no decorrer do ano de 2011. Acredita-se que o Pintor de Itabuna estivesse entre a equipe que realizou esses trabalhos. Localizados por nossa reportagem, os donos da empresa de pintura Trovesine & Filhos confessaram que o empregado anão sofria constantemente com bullyng, praticado à exaustão pelos companheiros de trabalho e por alguns contratantes.

O delegado de polícia Sérgio Trancone acredita na hipótese de vingança como motivo principal para o crime: “temos fortes indícios de que os assassinatos foram uma represália do anão contra as brincadeiras de mau gosto praticadas contra ele”. Vizinhos do anão homicida revelaram a nossa reportagem que no momento da prisão o serial killer gritava compulsivamente: “pintor de rodapé é o c******”.